terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Mockumentary: introdução ao gênero


A hora e a vez do falso documentário

No post anterior, afirmei que os falsos-documentários têm me interessado muito de uns tempos pra cá. Na verdade, interessam-me tanto que meu trabalho de conclusão do curso de audiovisual da ECA está centrado nesse tipo de filme. Dentre os motivos que me impulsionam a escrever sobre esse tema, destaca-se a própria escassez de reflexão sobre o mockumentary enquanto um gênero autônomo na crítica cinematográfica.
Em artigo publicado na revista Post Script, em 2002, Gary Rhodes afirmava: “mockumentaries – films made to look like documentaries, despite their fictional or partially fictional status – have become one of the most exciting filmic forms to emerge in the late 20th century”. E vale lembrar ainda as palavras do personagem alter-ego do roteirista Charlie Kaufman no filme Adaptação, quando ele afirma que “não houve um novo gênero cinematográfico desde que Fellini inventou o mockumentary”. Apesar de não botar a minha mão no fogo por nenhuma dessas afirmações (quanto ao Fellini ter inventado o gênero, nem sei se o Kaufman se referia ao Oito e Meio, ou ao I Clown), elas dão uma boa dimensão do quanto o mockumentary é novo, instigante e, num certo sentido, ainda não devidamente esmiuçado pelos teóricos do cinema. Proponho-me, então, a fazer aqui uma brevíssima introdução ao gênero.
Mockumentary (junção das palavras mock – pilhéria, gozação – e documentary), também conhecido como documentário ficcional, falso documentário ou pseudo-documentário, é o termo que designa o gênero audiovisual (televisivo e cinematográfico) dos filmes que se apresentam como documentários embora não tenham por objeto eventos e/ou pessoas reais. Geralmente, é utilizado como um veículo para sátira ou paródia, mas existem também casos de filmes que se valem da aparência de documentário sem buscar obter efeito cômico – dos quais o exemplo mais conhecido é, evidentemente, A Bruxa de Blair, que se apresenta como documentário em busca de maior dramaticidade e suspense, e não de comicidade. Os mockumentaries usualmente se apresentam como documentários históricos, combinando o uso de imagens de arquivo (reais ou recriadas) com depoimentos, mas podem também emular um documentário observacional, seguindo personagens por determinados eventos, ou uma reportagem televisiva.

Nos últimos anos, o gênero ganhou extraordinária notoriedade graças à emergência de um segundo blockbuster que também se apresenta, na aparência, como documental: Borat, a impagável sátira de Sasha Baron Cohen que embaralha as fronteiras do gênero ao retratar eventos reais com os quais interage um personagem totalmente fictício. Logo mais deve estrear no Brasil outro exemplar ilustre do gênero: A Morte de George W. Bush, que retrata um atentado fictício contra o presidente cabeça-de-bagre como se fosse verdadeiro.
Mas se este parece ser “o” momento dos falsos documentários, exemplos desse tipo de sátira cinematográfica remontam ao menos ao final dos anos 50. Um curto trecho do programa da televisão britânica Panorama, conhecido como Swiss Spaghetti Harvest, apresentava imagens de uma suposta colheita de espaguete na Suíça – criado pelos produtores do programa para a edição de 1º de abril da revista eletrônica, como uma piada. Aquela falsa reportagem é usualmente reconhecida como o primeiro exemplo de um mockumentary. Brian Winston, ex-diretor do British Film Institute, acredita que o primeiro mockumentary de longa-metragem tenha sido David Holzman's Diary, de 1967, dirigido por Jim McBride.
Vale lembrar também que a famosa transmissão da Guerra dos Mundos pelo rádio perpetrada por Orson Welles é um legítimo antepassado do gênero, ainda em sua versão radiofônica. Não obstante, Welles, posteriormente, no final de sua carreira como cineasta, dirigiria um autêntico mockumentary: F for Fake, um dos pseudo-documentários mais bem-sucedidos, do ponto-de-vista estético, já criados. Os filmes já citados de Fellini também podem ser considerados, ainda que parcialmente, falsos documentários.
Apesar desses antecedentes todos, o termo mockumentary só foi utilizado pela primeira vez para descrever o filme This Is Spinal Tap, dirigido por Rob Reiner em meados dos anos 80. Ali, emula-se um filme do cinema-direto sobre uma banda de heavy metal fictícia – a tal Spinal Tap – com o intuito de ridicularizar uma cena que musical que estava então no auge. Deu tão certo que, a despeito do absurdo de algumas situações retratadas no filme, muitos espectadores se convenceram de que a Spinal Tap era uma banda que realmente existia – o que acabou, eventualmente, tornando-se verdade. Apesar de ainda ser o exemplo mais conhecido de um caso desses, o filme de Reiner não é o único: mockumentaries sobre bandas ou artistas que nunca existiram são bastante numerosos – tanto que poderiam até constituir um sub-gênero à parte. Um que certamente merece ser visto é The Rutles (ou All You Need is Cash), de Eric Idle e Gary Weis, de 1979, em que o ex-Monty Python comanda uma paródia aos filmes dos Beatles (a banda do filme, The Rutles, assim como o Spinal Tap, chegou a lançar um disco próprio). Outros mockumentaries biográficos sobre bandas ou músicos fictícios incluem Fear of a Black Hat, de Rusty Cundieff, 1994, sacaneando o mundo do hip-hop, Get Ready to be Boyzvoiced, uma piada norueguesa com as boybands, Hard Core Logo, de Bruce McDonald, A Mighty Wind, de Christopher Guest, e Poucas e Boas (Sweet and Lowdown), de Woody Allen.

É também de Woody Allen, aliás, aquele que é talvez o exemplo mais acabado dos potenciais cômicos de se contar uma história de ficção com a aparência de um documentário: Zelig, uma de suas obras-primas e um de seus filmes menos conhecidos. Filmado em 1983, Zelig é a suposta biografia de um homem capaz de mudar imediatamente aparência, absorvendo para si as características étnicas e as convicções de quem quer que esteja ao seu lado, como um autêntico camaleão humano. Depois escrevo mais sobre esse filme, porque ele certamente merece uma análise mais pormenorizada. Por ora, registre-se apenas que é simplesmente genial. Se você nunca viu, veja já.
Outro filme paradigmático no gênero é Operation Lune (também conhecido como The Dark Side of the Moon), dirigido por William Karel em 2002. O filme usa só imagens de arquivo autênticas para sustentar a tese de que a chegada do Homem à lua, em 1969, nunca ocorreu: a transmissão a que todos viram teria sido, na verdade, encenada dentro de um estúdio de Hollywood, sob a direção de ninguém menos do que Stanley Kubrick. Entrevistas de Kubrick feitas à época do lançamento de 2001 – Uma Odisséia no Espaço se encaixam perfeitamente no contexto e dão autenticidade à teoria esdrúxula: tanto que não demorou para que teóricos conspiracionistas de plantão passassem a propagá-la como verdadeira, consolidando a idéia de que a chegada do homem à lua foi uma farsa como uma lenda urbana amplamente conhecida.

Além de Sasha Baron Cohen, que vem praticando a forma pseudo-documental desde os tempos de seu programa de TV, Da Ali G Show, há também outro cineasta, bem menos conhecido, cuja carreira é quase integralmente dedicada ao mockumentary: trata-se do americano Christopher Guest. Guest despontou exatamente no filme de Rob Reiner, que ele roteirizou e protagonizou, como um dos metaleiros cabeludos do Spinal Tap. Sua carreira anterior como roteirista de TV já apontava sua predileção por maquiar sátiras como documentários e toda sua carreira posterior confirma o seu gosto pela coisa. Guest é o diretor de uma série de comédias em que o roteiro é bastante aberto à improvisação e que procuram, em algum momento ou durante todo o filme, simular a estrutura e a aparência de um documentário. O que muda em seus filmes é apenas o alvo da sátira: em A Mighty Wind, de 2003, uma banda de folk que se reúne após anos de ostracismo; em Waiting for Guffman, de 1996, o teatro comunitário e o preconceito contra os gays no interior dos Estados Unidos; em Best in Show, de 2000, os concursos de beleza caninos.
Por fim, apenas para não deixar ninguém de fora desse levantamento básico dos pseudo-documentários, merecem menção como experiências interessantes no gênero The Canadian Conspiracy, de Robert Boyd, de 1985, Incident at Loch Ness, de Zak Penn, de 2004, On Edge, de Karl Slovin, de 2001, To Kill a Mockumentary, de Stephen Wallis, de 2005, um mockumentary metalingüístico, Os Primeiros na Lua (Pervye na Lune), de 2005, um filme russo delirante também feito inteiramente de imagens de arquivo, exibido aqui na Mostra Internacional de São Paulo alguns anos atrás, e a segunda parte de Histórias Proibidas (Storytelling), de Todd Solondz, de 2001, que se dividia em dois segmentos, não por acaso batizados de realidade e ficção.
Além de todos estes, The Last Broadcast, de Stefan Avalos e Lance Weiler, e Special Bulletin, de Edward Zwick, que antevêem uma cobertura jornalística do holocausto nuclear, e O Último Filme de Horror (The Last Horror Movie), de Julian Richards, que emula um reality show auto-produzido por um serial killer, e This Girl’s Life, outro que emula reality show, mas sobre uma atriz pornô, são filmes bem ruinzinhos, mas dão uma bela idéia do potencial do gênero.
Se o gênero tem todas as condições, em nosso mundo de parâmetros confusos, para falar a um público bem mais amplo do que o de seus atuais admiradores, o que lhe falta é maior atenção de distribuidores. Assistir a todos os filmes que eu citei aqui é tarefa bem árdua, ainda mais em terras brasilis. Os filmes dos grandes diretores, claro, além do Spinal Tap, do filme do Solondz, de alguns do Guest, estão disponíveis em DVD no Brasil ou fazem parte da grade de programação de algum canal a cabo (This Girl’s Life, que é inédito, passa de vez em quando no Telecine). Mas é só. Algumas pérolas do gênero, só baixando mesmo, ou importando, e alguns nem assim. Quem sabe com o sucesso de Borat, a coisa mude um pouco de figura.
Para quem quiser se aventurar, há um pequeno caminho das pedras abaixo (atenção: é preciso se cadastrar no site Making Of para pode acessar os links para download dos filmes. Mas é fácil e sem contra-indicação). E não consigo achar em lugar nenhum os filmes To Kill a Mockumentary e David Holzman's Diary, nem para comprar o DVD, nem para baixar. Se alguém os encontrar, por favor, avise – a recompensa será o post do filme aqui, claro.

Confira:
Links para o download de F For Fake
Zelig no Making Of (com links para download do filme)
Borat no Making Of (com links para download do filme)
Links para o download de A Bruxa de Blair
Links para o download de This Is Spinal Tap
Links para o download de Operation Lune (The Darkside of the Moon), no mininova.org ou no Torrentz
Links para o download de The Rutles: All You Need Is Cash
Links para o download de Fear of a Black Hat
Links para o download de Get Ready to Be Boyvoiced
Links para o download de Hard Core Logo
Links para o download de A Mighty Wind
Links para o download de Poucas e Boas (Sweet and Lowdown)
Links para o download de Best in Show
Links para o download de Waiting for Guffman
Links para o download de Incident at Loch Ness
Links para o download de Os Primeiros na Lua (Pervye na Lune)
Histórias Proibidas (Storytelling) no Making Of (com links para download do filme via torrent)
Links para o download de The Last Broadcast
Links para o download de Special Bulletin
Links para o download de The Last Horror Movie (ripado de DVD espanhol). O filme existe também em DVD no Brasil, lançado pela Daylight Filmes
This Girl’s Life na programação do Telecine e para download no Torrentz

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto, muito bem escrito. E é incírvel saber que existem pessoas que se interessam por esse tipo de tema, já que a sociedade tá tão bitolada no que é certo e no real que não há nem espaço para nada que seja 'quase verdade' ou simplesmente uma mentira. Uma mentira válida, já que os objetivos desse tipo de trabalho é tanto exercitar a liberdade de interpretação do público quanto divulgar pessoas (ou gênios) e fatos 'esquecidos'. Fora essa sensação que ficamos de duvidar de tudo e de todos durante o filme e mesmo assim acreditar. É demais isso!
Parabéns pelo post! Espero ver mais coisas boas por aqui. Arrasa!!

Dedé Kanashiro disse...

Acabei de ler seu post há quase exatos dois anos da sua publicação e achei a sua pesquisa realmente admirável. Me interesso por Mocks e pretendo em breve realizar um experimento em vídeo nesse sentido para minha pós graduação.
As fontes citadas por você são muito mais abundantes que eu encontrei em qualquer outro lugar na internet. Gostaria de parabeniza-lo pela pesquisa e pela crítica tão bem escrita.